Não será todos os dias que um
licenciado ao Domingo escreve um livro. Aliás, licenciados ao Domingo não há
assim tantos, facto que levanta questões sobre a relevância estatística da amostra.
O certo é que, escrevendo apenas um livro, quer dizer, dando forma de livro a
uma tese de mestrado, o ex-líder partidário e agora Mestre José Sócrates
conseguiu uma projecção mediática que, apesar de todo o reconhecimento
científico internacional que granjeia, o ex-líder partidário Francisco Louçã não
conseguiu escrevendo dez livros já depois do doutoramento.
E o lançamento do tal livro do
século foi ontem, numa cerimónia presenciada por uma amostra significativa do
que foi e do que querem volte a ser o homenageado da noite. Lula da Silva,
actualmente investigado por corrupção no Brasil e pai de uma daquelas fortunas
que se fazem do dia para a noite (e que inclui
a OI, a da tal transacção com a PT que Sócrates isentou de qualquer imposto),
deu o mote: “Debater
o futuro é debater a democracia, o futuro da esquerda europeia”. Falou da
especulação financeira, proclamou “o orgulho de dizer que somos socialistas” e
sentenciou: “As crises são dádivas de Deus para que a gente faça a reflexão”.
Por que não? A esquerda a que Lula se referia acorreu em grande número à
cerimónia.
Comecemos pelo outro convidado de
honra, Mário Soares. Esteve em foco nos últimos dias por ter quebrado um
silêncio de cinco anos sobre o banco cujo passivo, e apenas o passivo, o
Governo dirigido pelo homenageado nacionalizou em 2008. Mário Soares é o homem
que devolveu o património à oligarquia que enriqueceu durante a ditadura à
sombra do condicionamento que durante 48 anos lhe garantiu o monopólio da
exploração de uma mão-de-obra espezinhada por salários e condições de trabalho
de miséria, violentamente reprimida quando ousava reivindicar nem que fosse a
dignidade mais ínfima. É o homem que evitou que os crimes da ditadura fossem
julgados ao ponto de nem sequer terem sido contabilizados os mortos nas prisões
para delitos de opinião. É o homem que na campanha eleitoral das legislativas
do memorando que o centrão a que pertence o seu PS assinou de cruz disse aos
portugueses para não terem
medo do FMI. É o homem que não abriu a boca para condenar a homenagem que
as estruturas do PS que enriquecem com um regabofe imobiliário em Braga
promoveram a um assassino fascista em Agosto
passado.
Entre os demais presentes
pertencentes a este orgulho de ser socialista merecem destaque Jorge Coelho, o
homem das PPP da Mota-Engil, Noronha do Nascimento e
Pinto Monteiro, dois símbolos dessa auto-estrada que ficou por fazer entre o Freeport de Alcochete e a prisão da Carregueira, Proença de
Carvalho, nome sonante dessa praça
do parecer que anualmente sorve milhões ao erário público, António
Carrapatoso, o empreendedor do Compromisso Portugal que, entre outras
proezas, obteve um prémio de 740 mil
euros pela invisibilidade que conseguiu para si aos olhos da máquina
fiscal e Pedro Silva Pereira e Maria de Lurdes Rodrigues, nomes grandes
dessa cruzada contra os “poderosos interesses corporativos” que o socratismo
iniciou contra funcionários públicos e professores, por si eleitoscomo os
preferidos para pagar todos os festivais socráticos, pré-socráticos e
pós-socráticos. Haveria mais nomes, mas a série já vai longa.
E não. Não nutro qualquer ódio primário a Sócrates. Também não pertenço ao grupo de patetas que lhe atribuem o
exclusivo das responsabilidades pela situação a que o país chegou. Mas também
não tenho por ele qualquer simpatia. Irrita-me que o digam um homem de esquerda
depois do código laboral que aprovou, do desmantelamento das carreiras da
Administração Pública e de serviços públicos que promoveu, dos negócios escuros
e relações opacas que estabeleceu com os grandes interesses económicos, da
austeridade que iniciou, apenas mais branda do que a actual por ter acontecido
primeiro, da subserviência à Europa do Tratado de Lisboa que ratificou à
revelia de uma consulta popular. Não sou daqueles que se contentam em pertencer
a esta esquerda que está tão à direita do centro e que nunca sairá daí enquanto
se cultivar como se cultiva a falta de memória, enquanto o não ser tão mau continuar
a ser confundido com ser melhor, enquanto continuarmos a homenagear os homens do
problema e a ostracizar os homens da solução. Sócrates foi um dos nossos homens
do problema. Foi apenas um, Mas foi. Debater o futuro não é o mesmo que reescrever o passado. Passamos a vida a reabilitar os nossos vilões de estimação. E depois queixamo-nos que estamos sempre a tropeçar nas mesmas pedras.
PS. Sobre a obra
literária do século, vale a pena ler este “Sócrates: um vira-casacas ou um
convertido sincero à causa dos Direitos Humanos?” do Ricardo
Alves.
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